"A disparatada ideia de um matrimónio indissolúvel esteve em voga nos últimos dois mil anos. Modernamente, achou-se que era muito monótono um casamento para sempre e, por isso, inventou-se o casamento a prazo, ou seja, precário.
Ao princípio, a lei entendia dever proteger os interesses dos filhos e do cônjuge contra os quais era pedido o divórcio. Mas como um tal conceito de culpa ou de responsabilidade parecia contrário à moralidade laica, entenderam agora os deputados que o matrimónio deve ser revogável em qualquer caso, mesmo a pedido do cônjuge faltoso. Esta moderna liberdade democrática mais não é, portanto, do que uma nova versão do antigo repúdio.
A possibilidade do despedimento do cônjuge, sem necessidade de nenhuma razão, não tem contudo paralelo na legislação laboral, onde se exige que a entidade patronal seja mais respeitosa dos direitos dos seus assalariados. Quer isto dizer, em poucas palavras, que o patrão pode agora mandar bugiar a sua patroa sem necessidade de se justificar e até mesmo depois de a ter sovado, mas já não pode despedir com a mesma liberalidade a sua secretária pois, para um tal desatino, a lei exige-lhe uma justa causa.
A incongruência entre os dois regimes legais é de feição a concluir que o Estado prefere as empresas às famílias; ama mais o lucro do que a moral. Mas também ensina que quem quiser uma duradoira relação pessoal deve optar pelo contrato de trabalho e nunca pelo matrimónio, do mesmo modo como, quem pretenda um vínculo contratual facilmente rescindível, deve casar-se e nunca enveredar por um contrato laboral.
Quer estabelecer uma relação estável, com uma pessoa do outro sexo, contando para o efeito com todas as garantias legais? Pois bem, estabeleça com essa pessoa um contrato de trabalho e fique descansado, porque o Estado vai assegurar o fiel cumprimento desse pacto, ao contrário do que aconteceria se com ela casasse, porque o matrimónio é um vínculo tão precário que nem sequer se necessita nenhuma razão para proceder à sua extinção.
Se o problema é, pelo contrário, conseguir uma pessoa que assegure o serviço doméstico, sem perder a possibilidade legal de a despedir se a sua prestação não for satisfatória, mesmo que a lei não contemple esse caso para a rescisão do respectivo contrato laboral, a solução é simples: recorra a uma pessoa do outro sexo e case-se com ela, pois mesmo que não tenha qualquer razão que justifique legalmente o seu despedimento, o Estado garantirá a possibilidade de dela se divorciar quando e como quiser.
Quer uma relação para toda a vida? Faça um contrato de trabalho, mas não case! Quer uma relação precária, de que se possa desembaraçar quando quiser e sem necessidade de nenhuma causa justa? Case, pois não há vínculo jurídico mais instável no sistema jurídico português!
Moral desta história imoral: empregue a pessoa que escolheu para parceiro de toda a sua vida e case com a sua mulher-a-dias!"
Gonçalo Portocarrero de Almada
Ao princípio, a lei entendia dever proteger os interesses dos filhos e do cônjuge contra os quais era pedido o divórcio. Mas como um tal conceito de culpa ou de responsabilidade parecia contrário à moralidade laica, entenderam agora os deputados que o matrimónio deve ser revogável em qualquer caso, mesmo a pedido do cônjuge faltoso. Esta moderna liberdade democrática mais não é, portanto, do que uma nova versão do antigo repúdio.
A possibilidade do despedimento do cônjuge, sem necessidade de nenhuma razão, não tem contudo paralelo na legislação laboral, onde se exige que a entidade patronal seja mais respeitosa dos direitos dos seus assalariados. Quer isto dizer, em poucas palavras, que o patrão pode agora mandar bugiar a sua patroa sem necessidade de se justificar e até mesmo depois de a ter sovado, mas já não pode despedir com a mesma liberalidade a sua secretária pois, para um tal desatino, a lei exige-lhe uma justa causa.
A incongruência entre os dois regimes legais é de feição a concluir que o Estado prefere as empresas às famílias; ama mais o lucro do que a moral. Mas também ensina que quem quiser uma duradoira relação pessoal deve optar pelo contrato de trabalho e nunca pelo matrimónio, do mesmo modo como, quem pretenda um vínculo contratual facilmente rescindível, deve casar-se e nunca enveredar por um contrato laboral.
Quer estabelecer uma relação estável, com uma pessoa do outro sexo, contando para o efeito com todas as garantias legais? Pois bem, estabeleça com essa pessoa um contrato de trabalho e fique descansado, porque o Estado vai assegurar o fiel cumprimento desse pacto, ao contrário do que aconteceria se com ela casasse, porque o matrimónio é um vínculo tão precário que nem sequer se necessita nenhuma razão para proceder à sua extinção.
Se o problema é, pelo contrário, conseguir uma pessoa que assegure o serviço doméstico, sem perder a possibilidade legal de a despedir se a sua prestação não for satisfatória, mesmo que a lei não contemple esse caso para a rescisão do respectivo contrato laboral, a solução é simples: recorra a uma pessoa do outro sexo e case-se com ela, pois mesmo que não tenha qualquer razão que justifique legalmente o seu despedimento, o Estado garantirá a possibilidade de dela se divorciar quando e como quiser.
Quer uma relação para toda a vida? Faça um contrato de trabalho, mas não case! Quer uma relação precária, de que se possa desembaraçar quando quiser e sem necessidade de nenhuma causa justa? Case, pois não há vínculo jurídico mais instável no sistema jurídico português!
Moral desta história imoral: empregue a pessoa que escolheu para parceiro de toda a sua vida e case com a sua mulher-a-dias!"
Gonçalo Portocarrero de Almada
4 comments:
O texto está com imenso humor! Concordo que se em vez de as pessoas casarem optarem por um contrato de "trabalho doméstico" pelo menos tinhamos as centrais sindicais a defenderem os direitos de uns e a zelarem pelo cumprimento dos deveres de outros.
Viriato ou Viri como alguns carinhosamente já lhe chamaram, este inimputável é a mesma pessoa que o convidou para escrever no blog?!?
Achei o seu artigo bastante contemporâneo e acertado...
As sociedades e as civilizações, não há a miníma dúvida são ciclicas e a história repete-se. Este nosso Portugal e principalmente a Europa está mesmo a chegar ao êxtase do declínio do império romano. A ver vamos meus Senhores.
É, caro juíz implacável, ou como alguns lhe chamam carinhosamente, court man.
Se ainda não viu o novo blogue, convido-o a dar uma olhadela.
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